terça-feira, 18 de maio de 2010

Vênus

Uma noite silenciosa, um quarto de motel. Frente a penteadeira entrelaça nas mechas negras uma fita violeta. Olhos pintados, enegrecidos contrastam com a face pálida como a neve. Com um beijo a marca vermelha do batom figura o copo de vodka barata, esvaida num só trago pela gaganta deserta. O vestido negro se vai, deixando apenas o eco do salto pela memória...

A porta desliza devagar e um corpo esquálido de olhos fundos e ossos soltos surge. Caminha sem muita firmeza, pouco mais que um fantoche. Tem lá seu charme. Desliza pelo rosto sua mais nova herança; na mão direita um lenço branco com flores negras estampadas. Lenço de perfume e lágrimas. Uiva como um lobo para o céu de concreto em neon azul, cheio de velhos corpos que já não brilham, enferrujados. Tem uma estrela- mor que gira, gira, gira... e risca a face que além da matéria respira a última noite ainda, a única vivida no presente, e que assim conservará pelo resto das batidas.

Em tom suave acena para a lembrança, tão dilacerante mas tão boa que desvaloriza as outras. Um mal de alzheimer proposital aos fragmentos chamados verdade, da dor que mata e alimenta.

Olhos esfumaçantes de vinho e nostalgia queimam documentos, notas, gravatas e todas as peças da masmorra que ilude com o nome felicidade. Agora está tudo bem, nervos amortecidos, ombros relaxados e lábios doces, cheios do gosto da existêcia possível.

Por quadros renascentistas e melodias divinas caminha. Anjo, demônio, não humano! desacelera os passos, tolice. Respira.

Fecha a porta num adeus apaixonado, de mãos leves, quase pairando em vida própria, uma gaivota. E adormece com o veneno que todos gostariam de adormecer ou pelo menos sonhar. O veneno da euforia espiritual, do clímax corporal, da vida gozada como vida.

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